Há,
no Meio – Oeste, nos E.U.A,
Uma neblina escondendo a madrugada
Uma
multidão sonhando com um emprego;
Um
Mercedes surgindo na escuridão destruindo sonhos;
E
um Detetive Aposentado carregando raiva e uma pistola cheia de balas.
Existe
uma luta eterna travada por um escritor de sucesso contra si mesmo: a autossuperação!
Trata-se, e aqui me atenho em metáforas, de se levantar todas as manhãs e,
após uma vistoria analítica sobre si mesmo em frente ao espelho, questionar-se
sobre o que pode ser mudado sobre aquele rosto já conhecido por todos. Quando se
tem uma obra de sucesso, com público cativo e entregue avidamente por mais
daquele mesmo sabor, é quase uma batalha contra sua própria mente em busca de
um novo poço onde umedecer a ponta do pincel da mais sutil e tenra dose de
criatividade. Creio que todo escritor bem sucedido seja um tanto libriano em
seu Mapa Astral.
O
problema se torna mais urgente quando não se têm somente uma, mas, sim, dezenas
de obras bem recebidas pelo público e pela crítica especializada (e aqui
realizo outra ressalva quanto a esta terminologia, pois, no fim das contas, o
público também possui sua porção especialista. Afinal, quem melhor do que o
próprio leitor para dizer se aquela obra atingiu, ou não, seu coração?!)
King
se enquadra demais neste quesito. Uma vez mais seus dedos ágeis delimitam
monstruosidades inimagináveis de modo impar. Quando se pensa que sua fonte
secou, ele ressurge por baixo de um lamaçal de sangue, barro e madeira inflamada - restos de seu último trabalho -,
mostrando-nos que sua mente ainda consegue mergulhar mais funda neste amontoado
de lodo que é a espécie humana, provocando calafrios e a sensação de que não conhecíamos o mal por completo.
Iniciamos
Mr. Mercedes (2014) quando ainda é
madrugada onde centenas de pessoas fazem fila em uma feira de emprego,
desesperadas por conseguir trabalho. De repente, um único carro surge encoberto
pela neblina, avançando para a multidão. O Mercedes atropela vários inocentes,
antes de recuar e fazer outra investida. Oito pessoas são mortas e várias ficam
feridas. O assassino escapa. Meses depois, o detetive Bill Hodges, ainda atormentado pelo fracasso na resolução do caso,
recebe uma carta de alguém que se autodenomina Assassino do Mercedes. Hodges desperta da aposentadoria decidido a
encontrar o culpado. Mal sabendo ele que, quando se mata uma vez, o desejo de
repetição perdura. Mal sabia ele que o Mr. Mercedes está planejando, desta vez,
algo bem maior para marcar a História.
À medida que
Hodges analisa a carta e as palavras do Mr. Mercedes, mais ciente fica este de que a maldade humana é uma carro em descida constante e sem freios ladeira
abaixo. Como símbolo de seu jogo de gato e rato, Mr. Mercedes distribui sobre
a carta inúmeras carinhas com dentes serrilhados que parece sorrir e debochar
da pobre e esquecida vida do "Det. Após." (Detetive Aposentado).
Temos
aqui uma das personagens mais atormentadas de Stephen King (e mais
inevitavelmente detestável, também!). Logo sabendo a identidade do Mr.
Mercedes, mas, quando a narração passa a ser contada por suas mãos, sentimos
que não é somente Chapeuzinho Vermelho que possui um lobo à espreita.
(…) há poços na Islândia tão profundos que é
possível jogar uma pedra e jamais ouvir o som dela atingindo a fundo. Ele acha
que algumas almas humanas também são assim. (p. 34)
King nos
direciona a entender a extensão da perversidade de Mr. Mercedes quando indica
que este mora na Elm Street, n. 49, mesma rua em que o homem deformado e com
garras de aço, Freddy Krueger, atacou um grupo de adolescentes em seus
pesadelos, na Hora do Pesadelo (1984).
Seria Mr.
Mercedes uma alusão ao instinto dos moradores daquela rua que queimaram em viva
Freddy, munidos de ira?
Ou seria ele o
próprio Freddy que aponta o cano de sua maldade para os sonhos de outros,
apertando o gatilho em seguida? Afinal, nos momentos em que este investiu, foi
contra pessoas que lutavam em busca de um sonho a ser realizado (ok! Acho que
viajei demais aqui!).
Outro ponto a se
referenciar sobre a vida e o comportamento do Mr. Mercedes é um claro complexo
de Édipo na narrativa. Assim como o relacionamento entre Norma e Norman Bates
em Psicose, de Robert Bloch, Mr.
Mercedes apresenta o mesmo trato com a sua:
“- Venha dar um
beijo na Mãe, meu amorzinho.
Ele se aproxima
do sofá, tentando não olhar para a fenda frontal do roupão e tentando ignorar a
sensação rastejante sob seu zíper. Ela vira o rosto para o lado, mas quando ele
se inclina para beijá-la no rosto, ela vira a cabeça e pressiona sua boca úmida
semi aberta sobre a dele. Ele sente o gosto da bebida e sente o cheiro do
perfume que ela sempre passa atrás das orelhas. Ela o passa em outros lugares
também.
Ela coloca a
palma de uma mão na nuca dele e acaricia seu cabelo com a ponta dos dedos,
enviando-lhe um arrepio pelas costas. Ela toca seu lábio superior com a ponta
da língua, só um pequeno movimento, um momento, então se afasta e o encara com
grandes olhos sedutores.
- Meu amorzinho,
- ela suspira, como a heroína de algum filme romântico feminino – do tipo onde
homens brandem espadas e as mulheres usam vestidos decotados com seus peitos
puxados para cima como bolas reluzentes.” (p. 97)
A referência se
confirma quando conhecemos o passado de Mr. Mercedes e descobrimos que o nome
de seu pai também era Norman. A questão que fica no decorrer da narrativa –
para quem conhece o enredo de Psicose. – é se Mr. Mercedes dará o mesmo fim a
sua mãe…
Conforme a
narrativa segue, mais entendemos as intenções de ambas as personagens:
Por um lado…
Hodges precisa
reaver sua honra a princípio, mas isso fica de lado quando as investidas de
outro se tornam pessoais.
Por outro…
Mr. Mercedes tem
sede!
Sede em sentir a
adrenalina correr novamente por suas veias, assim como quando sentiu o Mercedes
tremer quando os pneus esmagaram e retorceram massa humana…
Sede em poder
ter a oportunidade de ser lembrado para sempre…
Sede em fazer o
“pobre Det. Apos. Sofrer!"
Então, quando o
confronto entre os dois finalmente se aproxima, você tem a certeza de que,
agora, não é somente o Mr. Mercedes quem está disposto a matar.
Quando você olha
para o abismo,
Nietzsche escrevera, o abismo também olha para você.
Eu sou o abismo,
garotão. Eu. (p. 46)
King é mestre em
construir referências em suas obras. É gratificante quando reconhecemos as
referências que um autor escrever. Porém, torna-se fantástico quando este usa
referências de seus próprios livros…
Como ao citar o
Plymouth de Christine, o Carro Assassino
(1983):
cinco carros de
polícia estavam estacionados no terreno, dois enfileirados bem próximos ao
porta-malas do carro, como se os policiais esperassem que o grande sedan
cinzento fosse ligar sozinho, como
aquele velho Plymouth no filme de terror, e então tentassem fugir. A
neblina tinha engrossado para uma chuva fina. (p. 60)
… Ou ao
mencionar o monstruoso palhaço Pennywise, de It – A Coisa (1986):
– Assustador
para caralho. Já viu aquele filme na TV sobre o palhaço no esgoto?
Hodges meneou a
cabeça. Mais tarde - apenas semanas após sua aposentadoria – ele tinha comprado
um DVD do filme e Pete tinha razão. O
rosto da máscara era muito semelhante ao rosto de Pennywise, o palhaço do
filme. Os dois deram a volta novamente no carro, desta vez notando sangue
nos (p. 61)
Assim como a
referência sutil ao modo como Jack Torrance chamava o filho Danny em O
Iluminado (1977):
Jerome Robinson
está em seu computador, ouvindo sons em um site chamado “Sounds Good To Me”.
Ele ouve uma mulher rindo histericamente. Ouve um homem assoviando “Danny Boy.” Ouve um homem gargalhar e
uma mulher, aparentemente nos estertores de um orgasmo. (p. 252)
No entanto, as referências mais legais que acho são as que correlacionam os livros de King aos
do filho, Joe Hill, também autor de O Pacto (2010) e Nosferatu (. Nesta, a personagem está usando uma camiseta com Judas
Coyne, personagem protagonista do livro escrito por Hill em 2007, A Estrada da Noite:
- Quem sabe
Primeiros Socorros? - pergunta o que segurou Hodges.
Um roadie com um
longo rabo de cavalo grisalho dá um passo a frente. Ele usa uma camiseta
desbotada de Judas Coyne, e seus
olhos estão vermelhos brilhantes.
– Eu conheço,
cara, mas tô muito louco. (p. 377)
A história de
Bill Hodges se desenrola em mais outros dois livros, formando uma trilogia com Achados
e Perdidos e culminando em o Último Turno, ambos publicados em
2016.
Mr. Mercedes é
um fôlego a mais para a carreira de King. Um capaz de encher outros trezentos
balões de ar quente, fazendo-os voarem alto, riscando e tingindo com sangue o céu
da manhã.
Eventualmente King brinca de dirigir aquele mesmo Mercedes, investindo contra suas personagens que, inutilmente, só querem
escapar e viver.
A mão de King é
habilidosa…
… Leve…
E, vez ou outra,
faz com que sintamos o estalar dos ossos daqueles que, de modo desgraçado,
acabaram debaixo dos pneus.
A mão de King é
habilidosa…
… firme…
… E, quando
menos percebemos, somos nós quem estamos segurando o volante e pressionando o
pé contra o acelerador.
King nos faz
querer isso…
Faz com que
queiramos sentir a adrenalina com suas palavras.
Faz com que, no
fim das contas, sejamos um pouco Mr. Mercedes que só quer mais…
... KING!
MAIS KING!
MAIS KING!
Por Luvanor N. Alves
Eita, que resenha maravilhosa :D
ResponderExcluirJa faz um tempo que to olhando pra esse livro com vontade de lê-lo mas agora eu preciso ler o quanto antes! Ta maravilhoso o texto, parabéns :3
www.adoraveisdiasdecao.com.br
Muito obrigado, Leo!!!! Bom demais quando conseguimos fazer com que o outro sinta a mesma empolgação que a gente com um livro bom!! Fizemos outras resenhas sobre livros do "Rei". Espero que gosta delas também! Abração!!!
Excluireu tenho muita vontade de ler o stephen king mais não sei nem por onde começar , MR. MERCEDES me chamou atenção primeiro pela capa são lindas espero que esse ano eu consiga pelo menos ler um livro dele :P
ResponderExcluirBjsss
https://estantedasara.blogspot.com.br/
Sara, minha querida! King é ótimo!!! Sobre com qual começar, aconselho que seja por Misery - Louca Obsessão! Já fiz uma resenha sobre ele... Anexar o link aqui para que você dê uma olhadinha!
ResponderExcluirhttp://marcadorexpresso.blogspot.com.br/2016/12/misery-louca-obsessao-de-stephen-king.html