Há, no Maine, nos E.U.A,
Uma mãe religiosa condenando o mundo ao inferno;
Garotas asquerosas prontas a “estancar” aquilo que consideram anormal;
O sonho do Baile de formatura pronto a surgir na esquina...
E uma garota “estranha” capaz de torcer sua alma com o poder da mente.
Sempre existe uma espécie de aura pesada quando se busca referências
do terror na literatura. Em parte se levarmos em consideração a época em que
foram escritos, e todas as alarmantes críticas que receberam, como também se
observamos a real referência que estes “monstros” literários receberam para que
ganhassem vida.
No fundo, toda criatura dotada de doses do Mal não deixa de ser nada
mais nada menos do que resultado de impressões que a própria sociedade desperta
no autor, ou naquele que puxa a alavanca e eletrocuta a criação, dando-lhe
vida.
É comum nos depararmos hoje com a imagem do monstro atentando com uma luta
entre seu desejo por sangue e seu lado idílico latente, desperto, vemos o
monstro deixando de ser mal, em virtude de um bem ou uma força que o acalma, aplacando
a fera contra a parede. Em geral, o amor seria esta fonte milagrosa.
Em contra partida, obras se consagraram na literatura por apresentarem
o nascer do monstro. O seu despertar caótico seguido por um desejo de sangue,
sendo impulsionado por outros sentimentos como a tristeza, a mágoa ou a vingança.
A mágoa d’A Coisa criada por Mary Shelley, em Frankinstein, em 1818, ilustra
bem essa transformação em virtude de consequências negativas provocadas pelo
meio.
Afinal, como Rousseau definiu,
O HOMEM NASCE BOM, MAS A SOCIEDADE O
CORROMPE.
Sob esse mote, em 1974, Stephen King apresentou ao mundo a escuridão
de Carrie. Criada por uma mãe rigidamente religiosa e mergulhada no pântano do
fanatismo, a garota cresceu sendo o exemplo vivo da expressão “bode expiatório”.
Carrie era considerada o patinho feio da turma, da escola, de toda a cidade de
Westover (ao que dirá de todo o Maine, cruzando estados na América), e que, por
essa simples razão, merecia sofrer. Merecia diariamente ser espezinhada sobre os
calcanhares de todos na escola. O estopim de tudo o que acontecerá no Baile de
Formatura teve seu pavio acesso no vestiário feminino, após a aula de Educação
Física, quando Carrie menstrua pela primeira vez. Enquanto o sangue corre
cíclico pelo ralo, as outras garotas armam-se em coro estridente contra a
garota agachada e chorosa ao chão, lançando-lhe, às gargalhadas, diversos
absorventes e tampões. Em sua gana de dor, Carrie faz a lâmpada explodir com um
estouro seco. Levada à diretoria pela professora para que se recuperasse, o
diretor termina por suspender do Baile Chris Hargenser, a responsável por toda
a algazarra no vestiário. Com isso, Chris, minada de ódio por Carrie, decide
armar sua vingança contra aquela garota que, segundo ela, não deveria existir.
Enquanto Chris arma seu plano de vingança em pleno Baile...
Carrie, com mágoa e lembranças de humilhação borbulhando até a tampa,
toma controle de seu poderoso Dom: A Telecinese.
Carrie agora é capaz de mover objetos... Movimentar automóveis… E extrair
vidas somente com a força de seu pensamento.
“O gene da telecinesia, ou o gene TC, faz nascer mulheres
disseminadoras desse dom ameaçador, capazes de destruir praticamente tudo que
quiserem.” (p.63)
O livro foi o primeiro romance escrito por Stephen King. Obra que, na
época, nem ele dava muito crédito de que fosse realmente algo merecedor de ser
publicado, acabando por empurrá-lo lata de lixo à dentro. Tabby, esposa do
autor, foi quem resgatou as laudas da lixeira, leu e disse que ele deveria
continuar.
O romance foi escrito intercalando um interrogatório policial, pois
sabemos que ALGO aconteceu no Baile de Formatura e que Carrie está implicada de
algum modo com os fatos. Aos poucos, com narrações sobre dias antes do baile,
com os interrogatórios pós-baile e relatos científicos sobre telecinesia,
conhecemos o medo que existe em Carrie. O medo plantado ali, tanto pelo
fanatismo de sua mãe, quanto pelas garotas da escola.
Na introdução da edição de 2007 de Carrie, a Estranha, publicada pela
Objetiva, Stephen King lembra-se de Tina White e Sandy Irving.
Tina estudou na mesma escola de King quando adolescente. Segundo ele, “Tina
era gorducha e quieta, caipira de chorar. Em toda turma há aquele bode expiatório, o
que sempre sobra na dança das cadeiras, o que sempre acaba carregando o cartaz
dizendo ME CHUTE, o que está por baixo da hierarquia social. Tina era essa
aluna.”
Quanto a Sandy Irving, essa morava a uns dois quilômetros e meio da
casa onde ele foi criado. Certo dia, o jovem King, na época com 16 anos, foi
contratado pela mãe de Sandy para ajudar na mudança dos móveis da casa. Ele
lembra que ficou impressionado com o enorme crucifixo que havia na sala,
pendurado em cima do sofá delas. Ele lembra que pensou que, “se um ícone
gigantesco como aquele despencasse enquanto as duas estivessem assistindo TV,
certamente mataria aquela que por ventura atingisse”. Depois, ele soube que a
família tinha uma religiosidade esquisita e fervorosa. Por essa religião, as
crianças da rua se mantinham longe da jovem Sandy, que, além de ser epiléptica,
usava roupas estranhas e cheirava a um ranço de poeira, doce e enojado como pó
de livro.
Segundo King,
“Nenhuma das duas– feliz ou infelizmente – tinha o dom espontâneo de
Carrie White. Nenhuma das duas terminou o ensino médio, nem chegou aos 30 anos.
Tina suicidou-se, enforcada no porão de casa. Sandy morreu durante um ataque
epiléptico no apartamento que alugava na cidade”
Essas duas realidades de crueldade gratuita com o próximo, inspiraram
King a escrever sobre esta garota no Maine que também sofria abusos por parte
dos colegas, e que também tinha vontade de que tudo recebesse um fim.
Carrie respirou, ganhando telecinesia. Respirou tendo a chance que
todos merecemos de simplesmente ser convidada para um Baile, uma festa, ou
simplesmente ir ao bar da esquina com os amigos e sorrir. Carrie recebeu a
chance de reorganizar seu passado e classificá-lo como algo antigo e nada
merecedor de ser olhado.
Acontece, que mesmo quando escolhemos andar, existem pedras que não
nos deixam seguir
CHRIS HARGENSER É A ENORME PEDRA DE CARRIE!
Chris quer vingança...
Chris quer humilhança…
Chris quer ver Carrie luzir de vergonha para que jamais queira ver a
luz novamente!
Quando o Baile se aproxima do fim, Carrie explode!
“Parou no meio da escada e DOBRAR, todas as portas se fecharam
ruidosamente com a força concentrada que ela lhes direcionava, arrancando os
fechos pneumáticos. Ouviu pessoas gritando, e aquilo era música, doce música soul.” (106)
No Baile, Carrie é quem quer vingança!
Quem quer que cabeças rolem e que o Medo rasgue corações.
Todos ali só não contavam com um único detalhe quando a atormentaram
durante anos:
CARRIE PODE FAZER COM ELES O QUE QUISESSE!
A garota se tornou símbolo de luta! Não há somente maldade nua e crua
em seus atos, nem apenas excesso de uma mente que cansou de sofrer. Carrie é o
direito ao grito extraído das forças mais fracas ao longo dos anos por aqueles
que se julgam melhores. Carrie sempre quis apenas, não ser apagada e esquecida
na multidão, mas sim fazer parte de todos.
Quando se lê outras obras do autor, torna-se nítido que, por este ser
o seu primeiro, ainda não possui a exatidão nas palavras e na precisão
narrativa comum ao Rei do suspense, porém é nítido que este já possuía talento para
o gênero gritando em suas veias logo cedo.
Se vale a pena ler Carrie?
SIM!
Carrie é estranha? Sim
Mas Carrie é doce…
Carrie é inteligente…
Carrie tem coração e quer que percebam isso…
Carrie merece ser lida por aqueles que um dia se acharam no direito de
rir, de humilhar, de rebaixar...
Também por aqueles a quem tentaram destruir, mas que não conseguiram!
Ou, como King esperava, ...
“Às vezes – muito frequentemente, aliás – eu gostaria que Tina e Sandy
estivessem vivas para lê-la. Ou as filhas delas”
...
...
...
Por Luvanor N. Alves
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